sábado, 29 de outubro de 2011

Limpeza pelo vácuo

"... (...) Quanto a mim, moro no bairro judeu, ou no que era assim chamado até o momento em que nossos irmãos hitlerianos abriram espaço. Que limpeza! Setenta e cinco mil judeus deportados ou assassinados – é a limpeza pelo vácuo. Admiro esta aplicação, esta paciência metódica! Quando não se tem carácter, é preciso mesmo valer-se de um método. (...) ...". 

in "A Queda" Albert Camus


"Amamos desejar mais do que amamos o objecto do nosso desejo."
in "Quando Nietzsche Chorou", de Irvin D. Yalom

"Humano. Demasiado humano"

"Num filme o que importa não é a realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação." 
Charlie Chaplin

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Consultório

Cruzaram o respirar e sorriram sem os lábios.
Encontravam-se no mesmo local, pela mesma razão. 
Outra pessoa. A mesma pessoa. 
Ambos sabiam que seria assim, era uma questão de tempo, afinal tinham experimentado o mesmo motor de arranque. 
Conheciam bem os espinhos onde se cortaram. Estavam, ambos, esfrangalhados e tinham os rostos tingidos da mesma cor malvada. 
O momento era invulgarmente introspectivo e esclarecedor, os dois tinham perdido as singulares linguagens corajosas. 
Estavam numa grande poça de nada, mergulhados numa invisível maré vazia. 
No entanto, coraram. 
- Continuamos a ser os únicos animais que coram, não é verdade? Disse o mais velho. 
Nada. Não lhe foi devolvido um único som ou expressão.  
As carnes, o respirar, as mãos, deixavam transparecer que para aqueles dois Homens, a vida tinha terminado de uma forma abrupta e cruel. Estavam vazios do "eu", cheios de nada.  
A outra pessoa, a mesma pessoa, era mestre em sugar os outros. 
Porém, o tempo havia passado de forma diferente pelos dois.
Pelo mais novo, o tempo ainda era medido pelo tamanho dos dias; ao invés, pelo mais velho, já se encontravam os anos. 
Provavelmente por esse motivo, um conseguia falar e o outro, ainda, não. 

A cinza dos corpos em silêncio

Todos os dias, Ele voltava à janela. 
Todos os dias, Ela lá estava. 
Calados, frente a frente, cada um no seu lugar, acendiam, quase em simultâneo, os cigarros. 
Ela, com os joelhos encostados ao peito, fumava devagar, como quem saboreia um corpo inteiro e o experimenta pela primeira vez. 
Ele, em movimentos rápidos mas certeiros, inspirava e expirava velozmente o tabaco. 
De ambos os corpos não saía nada, escondiam o fumo como se fosse um segredo. 
Não se tocavam. Estavam presos no olhar iluminado pelas pontas que ardiam nos respectivos cigarros, tipo as lanternas quando deitadas ao rio.      
Por isso - talvez por isso - nunca apagavam os cigarros, deixavam-nos ficar ali, tal como Eles, a arder até se confundirem com o som da atmosfera e se transformarem em cinza.
Hoje, dia após dia, cada um volta à sua janela. 
Nunca mais se cruzaram. Chegam a horas diferentes. Incertas. 
Ela, continua a saborear da mesma forma cada cigarro.
Ele, deixou de fumar, vai à janela ver a Lua. 

"Assim, como?'"

Ligação directa ao Blog "Portugal dos Pequeninos".  

Palavras com a musica de Chico

Life goes on

Sou areia que se esvai


Sou esta areia que se esvai
entre o cascalho e a duna
a chuva de Verão chove-me na vida
sobre mim a vida que me foge persegue-me
e vai acabar no dia do começo

Caro instante vejo-te
nesta névoa que se levanta
quando não tiver de pisar estas longas soleiras movediças
e viver o espaço de uma porta
que se abre e que se fecha
Samuel Becket
em Relâmpago n.º 13 


Still believe