domingo, 6 de junho de 2010

A Sogra de "Bodas de Sangue"


Quando era jovem, costumava passear pelo campo para apanhar mariposas e espiar o gado bravo. Não havia quem a fixasse na paisagem, corria mais rápido que os ribeiros e cantava para as arvores até fazer dançar as folhas.
À noite, com olhar da coruja e a sabedoria do mocho, apanhava estrelas com os olhos e guardava o céu no coração.
Num cálido dia de Verão, deixou-se encantar pela voz colorida de um jovem marialva e, dessa mirada cigana, não se libertou até ao dia em que o viu ir nos braços mortos, da sua irmã mais velha.
Nesse instante, respirou fundo para esgotar as lágrimas e, sem um lamento ou um suspiro, congelou as veias para nunca mais correr pinga de sangue.
Os campos por onde correra, os ribeiros onde bebera e o gado que fora bravo, tornaram-se cinzentos, mansos e perigosos.
Petrificou-se como uma estátua viva e escureceu, por fora, com a mesma força que segurava nos braços uma filha delicada.
Os anos passaram e entre ela e o espelho não havia nada.
Onde ficaria quando todos estavam na Boda?
Sentada no alpendre da casa a cantar "nanas" ao menino, fumava pausadamente o seu charuto, a contemplar o vazio da paisagem, indiferente ao tocar das horas.
Num súbito mas já conhecido calafrio, pendurada num relâmpago de chuva seca, viu todo o seu passado palmilhar o futuro da sua filha. Nesse instante, o nada tornou-se insuportável. 
Debaixo do calor tórrido de Granada, largou o charuto - que nunca saboreou -  levantou o véu negro da cara e foi buscar a sua menina, como as lobas vão buscar as suas crias. 
Do resto tratou Frederico Garcia Loca.
(Texto escrito para a construção da personagem, no âmbito do espectáculo "Bodas de Sangues").

Frederico Garcia Lorca - FGL por AVS

“… - A tua obra recorda-me Eurípides ...” 
“… - Gosto que te recorde Eurípides …”[1]

FGL não é “apenas” um autor de teatro é, acima de tudo, um Poeta que escreveu para o teatro. A sua construção evidencia o quanto o autor Espanhol sabia que a dimensão das obras não provém do seu exterior mas sim do interior. Certamente por isso, e de um modo tão particular, percorreu com detalhe todos os recantos da suas escolhas, incutindo-lhes uma carga emotiva que caracteriza o seu estilo e o torna transcendente à dimensão linguística.
Nas palavras de Luís Rosales (seu amigo) “… todo o bom de FGL é pré-lógico, pré-intelectual e telúrico. O seu entronque com o teatro grego é muito apropriado e muito pensado. Em FGL a matéria, os temas, são básicos, primitivos e sentidos, ou seja, pré-intelectuais. Logo a elaboração artística é muito trabalhada. O mundo de FGL é grego, na medida em que o Homem não pode controlar a sua sina: é uma primitiva e piedosa negação da liberdade. …”[2].  
Delicadamente, FGL coloca-nos num mundo diferente, onde não é fácil entrar mas de onde não consta que alguém tivesse desejado sair.  Através de um imenso universo categórico, assente numa construção peculiar, onde tudo se afasta do convencional, Lorca faz despertar a observação do Homem para o que menos se expressa: o subconsciente.
Conseguindo conceber uma “cultura do sangue”, espontaneamente inspirada nos mistérios dos antigos Gregos, foi com uma argúcia acutilante que utilizou para a composição dos seus trabalhos o “microcosmos andaluz”, do qual retirou os factos que, depois, compôs e transfigurou, de forma muito elaborada.
Sobre a utilização dessa realidade, referiu FGL: “… Surpreendo-me muito quando dizem que os factos que existem nas minhas obras são atrevimentos meus, audácias de poetas. Não. São detalhes autênticos que a muita gente parecem raros (…) Amo a terra. Sinto-me ligado à terra em todas as minhas emoções. As minhas recordações de menino têm sabor a terra. A terra, o campo, fizerem grandes coisas na minha vida. O bichos da terra, os animais, as gentes campesinas têm sugestões que chegam a muito poucos. Eu capto-as agora com o mesmo espírito que tinha na minha infância. Se assim não fosse, não poderia ter escrito Bodas de Sangue. …”[3].
É, precisamente, através da conjugação das suas observações com factos, por vezes retirados dos jornais, que as obras se convertem em belíssimos quadros realistas, onde o experimentar permanente da liberdade, em relação a situações opressoras, se eleva como resolução. 
Assim foi em “Bodas de Sangue”, uma das três peças que integra a sua conhecida “trilogia dramática[4]. A teatralização de FGL, designadamente a criação da personagem da Lua, é o mais místico, e é o que transfigura o “Crime de Nijar” numa tragédia. Questionado sobre qual o momento dessa obra de que mais gostava, FGL respondeu: “… Aquele em que intervêm a Lua e a Morte, como elementos e símbolos de fatalidade. O realismo que preside até esse instante da tragédia quebra-se e desaparece nesse momento, para dar lugar à fantasia poética, onde é natural que eu me encontre como um peixe na agua. …”[5] .  
FGL, nasceu no dia 5 de Junho de 1898, em Fuente Vaqueros, na região de Granada. E foi, também, de Granada que, por razões que apenas a cobardia humana poderá explicar, em 19 de Agosto de 1936, deixou este mundo, sem registo de local ou horas certas. Nesse dia, aquele que escreveu que "Em Espanha um morto está mais vivo como morto do que em qualquer outro sitio do mundo: o seu perfil fere como o fio de uma navalha de barba.”[6], teve, certamente, uma terrível cena final.
Como nas suas tragédias, o silêncio ensurdecedor da sua partida permanece até hoje, num belíssimo e inconfundível eco, timbre de uma genialidade intuitiva e poética de que toda a sua obra é exemplo, e que a Humanidade não pode descurar: o culto da liberdade e o respeito pela dignidade humana.
Ana Vieira da Silva 
[1] Conversa entre Salvador Vilaregut e Garcia Lorca, Setembro de 1935 – Antonina Rodrigo “Garcia Lorca en Cataluña”
[2] Madrid, 29 de Maio de 1969.
[3] Madrid, 29 de Maio de 1969.
[4] Bodas de Sangue, Casa Bernarda Alva e …
[5] “El poeta Garcia Lorca y su tragédia Bodas de Sangue”, Madrid 9 de Abril de 1933.
[6]  Teoria y Juego del Duende (Frederico Garcia Lorca) – tradução de Naíbal Fernandes, Assírio & Alvim, Edição 1134, Abril de 2007.

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