Quando era jovem, costumava passear pelo campo para apanhar mariposas e espiar o gado bravo. Não havia quem a fixasse na paisagem, corria mais rápido que os ribeiros e cantava para as arvores até fazer dançar as folhas.
À noite, com olhar da coruja e a sabedoria do mocho, apanhava estrelas com os olhos e guardava o céu no coração.
Num cálido dia de Verão, deixou-se encantar pela voz colorida de um jovem marialva e, dessa mirada cigana, não se libertou até ao dia em que o viu ir nos braços mortos, da sua irmã mais velha.
Nesse instante, respirou fundo para esgotar as lágrimas e, sem um lamento ou um suspiro, congelou as veias para nunca mais correr pinga de sangue.
Os campos por onde correra, os ribeiros onde bebera e o gado que fora bravo, tornaram-se cinzentos, mansos e perigosos.
Petrificou-se como uma estátua viva e escureceu, por fora, com a mesma força que segurava nos braços uma filha delicada.
Os anos passaram e entre ela e o espelho não havia nada.
Onde ficaria quando todos estavam na Boda?
Sentada no alpendre da casa a cantar "nanas" ao menino, fumava pausadamente o seu charuto, a contemplar o vazio da paisagem, indiferente ao tocar das horas.
Num súbito mas já conhecido calafrio, pendurada num relâmpago de chuva seca, viu todo o seu passado palmilhar o futuro da sua filha. Nesse instante, o nada tornou-se insuportável.
Debaixo do calor tórrido de Granada, largou o charuto - que nunca saboreou - levantou o véu negro da cara e foi buscar a sua menina, como as lobas vão buscar as suas crias.
Do resto tratou Frederico Garcia Loca.
(Texto escrito para a construção da personagem, no âmbito do espectáculo "Bodas de Sangues").