Todos os dias, para ir trabalhar, piso o mesmo caminho. Todos os dias, vou sem travões. Não há dia que não me atrase. Perco-me a olhar para as pessoas e a encontrar personagens, a ver as folhas dançarem no chão e nas árvores, a admirar o movimento das gruas nas obras, a ouvir os pingos da chuva - parecem notas musicais. Quando o sol governa e o calor aperta, aumento a velocidade. Não há o risco de escorregar, as pedras da calçada ficam quentes e os meus pés, para me desviarem dos buracos, deslocam-se numa espécie de valsa. Nesses dias atinjo uma velocidade assustadora, deve ser a força do sol que se entranha nas pernas.
Chego ao destino e afogo-me numa garrafa de água. Seja inverno ou verão, é dos momentos mais gostosos do dia. Água. Todo o meu corpo se transforma em água. Rego-me. Aclaro-me. Seco-me e navego. Deixo-me ir nas ondas...
Ontem foi diferente. Abrandei a velocidade na descida até ficar imóvel a contemplar um novo instante. Um grupo de juventude. Sim, um grupo de juventude, não me enganei na discrição. São moderados na altura mas enormes pelo que consagram. Existem na realidade. A juventude não existe, apenas, bem (d)escrita nos livros, dos autores Russos, ou nas imagens captadas pelos bons fotógrafos. É uma realidade, tem consistência e não tem tempo limite.
Dois a dois, cheios de remoinhos nos cabelos, lá estavam de mãos dadas. Umas mãos pequeninas, agarradas umas às outras com tanta força que não fazia doer. A maioria tinha um casaco vestido e por baixo um bibe, com nome bordado. O primeiro e o último nome. Também tive bibes assim.
A orientar a formatura estava uma “Senhora Despachada”, vestida à polícia sinaleiro, como aqueles que outrora estavam nos cruzamentos em Lisboa. Tinha um colete verde florescente, um verde tão verde que parecia fresco e, de tão verde que era, ofuscava os olhos. Por baixo do colete, tinha um casado apertado ao rosto, vestia estreito como o sorriso que aparentava nos lábios e faltava na face. Falava alto, bafejava com perdigotos e movimentava o tronco, com as pernas paradas.
Indiferentes, completamente indiferentes, aqueles remoinhos nos cabelos permaneciam serenos a observar as cores e os sabores da manhã. Bem despertos, com as mãos sempre apertadas e os pés em permanente animação, tinham um olhar claro, independente da cor dos olhos. Olhavam para cima, sorriam para os desenhos que as nuvens ofereciam, apontavam para o céu e pintavam as figuras com os lápis de cor que traziam na ponta dos dedos. Com os braços pequeninos abraçavam o tamanho do dia, desprendidos da quantidade de tempo que tinham de percorrer até voltarem a casa. Nunca abandonavam as mãos.
Quando somos crianças não largamos as mãos. Apertamo-las às outras - maiores, mais pequenas, iguais ou diferentes. Agarramo-nos, sem medo. Permanecemos dentro delas sem pensar no movimento seguinte. E se, naturalmente, entregamos as mãos, a um objecto, ficamos seguros pelos dedos. Não é assim? Os gestos das mãos dizem tudo. São uma espécie de reflexos do olhar. Prendem-nos à juventude (ou à falta dela).
Fiquei ali, amparada àquelas mãos todas juntas em duas, a imaginar a história daqueles remoinhos. A recordar os meus bibes e a sentir as mãos que carregavam os bolsos cheios de sorrisos, gargalhadas, lenços ranhosos e, por vezes, lágrimas quentes - os bolsos dos meus bibes eram impermeáveis às lágrimas frias - estavam sempre cheios de mim e de outros.
Discretamente, enquanto olhava para o céu e pensava nos desenhos das nuvens - casas.; cães grandes; golfinhos sarapintados; flores com pétalas coloridas; bolas de fumo doce; janelas…muitas janelas e portas com frinchas - sorri. Olhei em volta e sorri. Aquelas mãos que carregavam os bolsos dos bibes continuavam penduradas nos meus braços.
Num único céu, estávamos todos nas nuvens. Por isso permaneci ali com eles até que – dois a dois – aquela corrente de juventude iniciou o seu caminho. Fui na fila. É verdade, deixei-me ir naquela fila, sem que a “Senhora Despachava” notasse que não tinha um bibe com o meu nome bordado.
Ontem não prescindi da garrafa de água mas deixei de ter o corpo passado a ferro. Ainda tenho remoinhos no cabelo, continuo a ver desenhos nas nuvens e a percorrer, com muitas mãos, o meu caminho.
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